domingo, 28 de outubro de 2018

SER CANHOTO, por Carlos Lula



Sou canhoto. A habilidade de escrever com a mão esquerda, contudo, desenvolvi aos poucos. Mais do que ser canhoto, sou extremamente desastrado, por isso nunca perceberam o que acontecia comigo. Eu caía repetidamente, inclusive uma vez dentro de uma lixeira, tinha a letra mais feia que a política econômica do Michel Temer e praticamente nenhuma habilidade manual. Ninguém nunca parou pra reparar que eu simplesmente era canhoto, coitado. Achavam apenas que eu era um pouco mais lerdo do que a média geral. Confesso, tinham um pouco de razão. 

Os destros sequer imaginam como é difícil se adaptar às carteiras escolares que são especificamente feitas para o apoio do braço direito. No colégio, ou sentava todo torto ou escrevia uns garranchos no caderno. Por conta disso, só me lembro de chorar por ter de repetir inúmeras vezes a lição de casa, cuja leitura nem eu conseguia decifrar.

Fui crescendo e as coisas piorando. A tesoura, o zíper da calça, o botão da camisa, o mouse, o abridor de latas, a câmera fotográfica... nada nesse mundo - fui descobrindo - havia sido feito para os canhotos. O violão também, assim como o baixo. Nesse último caso, serviu como uma belíssima desculpa. Virei as cordas, tentei tocar de cabeça pra baixo. Não deu certo. Pelo menos minha total falta de talento foi despistada pela minha posição cerebral. 

Fui crescendo e percebi que ser de esquerda era praticamente um problema na minha vida. Uma coceira na mão esquerda sempre indicou que você vai perder dinheiro. Já uma na mão direita, que você receberá dinheiro. Estava sempre do lado errado.

Era olhado com desconfiança e lá por 1970 chegaram a vasculhar uns livros na estante do meu quarto. Sempre achei tudo isso muito estranho. A resposta estava no italiano. Se Esquerda se traduzia sinistra, esquerdo traduzia-se sinistro, que vem do latim sinistrum, que remete a mal ou desafortunado. Exatamente a vida de um canhoto.

E assim ocorreu durante boa parte da história da humanidade: o lado esquerdo e os que utilizam mais essa mão foram vítimas de preconceito cultural, social e religioso. Na Sagrada Bíblia, a mão direita é mencionada positivamente mais de cem vezes! Já a mão esquerda é mencionada somente 25 vezes, todas negativamente. Quando soube disso, ainda adolescente, fui me confessar e rezei cem orações do “Pai Nosso” para expiar meus pecados.

Ainda tentaram me dissuadir e me mostraram até os estudos do Cesare Lombroso, para quem os canhotos possuiriam maior suscetibilidade a psicopatias, criminalidade e violência. Ainda bem que os estudos de Lombroso não são mais considerados, sequer deveriam ser. Acho que tais traços não herdei.

Na minha vida inteira como canhoto fui aprendendo a ser considerado um criminoso, um rebelde, uma pessoa desagradável, alguém com a marca do diabo, um neurótico, uma pessoa quase maluca.

Assim fui vivendo, sem conseguir abrir uma lata com um abridor, suando para abotoar uma camisa, mudando o lado do mouse no computador e jogando futebol sempre dizendo que possuía duas pernas esquerdas. O mundo sempre viu a esquerda de modo diferente.

Neste domingo acontece as eleições na República dos Bruzundangas. Mais uma vez, o tema central é o combate aos canhotos. Ao que conste, o mito secular parece persistir e ainda não se compreendeu que a mão ou o pé dominante não importa tanto assim e não diz respeito à saúde, personalidade ou sucesso de alguém. São apenas maneiras diferentes de encarar a vida, o mundo e as estrelas. Assim como uma boa desculpa para quando se cair na lixeira. É que eu sou canhoto, pô, não está vendo?

Um comentário:

  1. Gostei muito do artigo e também como canhoto, já tive meus problemas qdo era criança, mas graças a Deus, tireio-os de letra e até já tomo vantagem por ter um mundo destro, certamente nós canhoto, podemos até usurfruirmos de certas vantagens com o desenvolvimento manual do ambidestrismo...qto ao Lombroso, já lí muito do italiano, por ter parentes e avô da área de medicina, interecei-me muito pelo Lombroso, porém logo fui orientado pelos equívocos de suas ultrapassadas teorias, mas muito do preconceito persistem na sociedade e em muitas culturas cientificamente atrasadas ou c influencias retrógadas religiosas.

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