segunda-feira, 18 de março de 2019

O CONTADOR DE HISTÓRIAS, por Carlos Lula


Escrever não é fácil. Minto. Escrever, colocar uma palavra ao lado da outra e encadear uma ideia é uma atividade relativamente simples, a despeito da ignorância que grassa mesmo entre as mais altas autoridades constituídas. Estas não só aparentam desconhecer regras mínimas de ortografia e concordância, como jamais aprenderam a usar a vírgula. Mas, tendo em vista a limitação intelectual de certas figuras de hoje, delas não se pode exigir muita coisa. Um orangotango bem treinado talvez conseguisse fazê-lo de melhor maneira.

Divago. O que quero dizer a vocês é que escrever pode ser bem simples, mas contar histórias não o é. E contar histórias de um modo que ela se torne verdadeiramente interessante a quem as lê é mais difícil ainda. Bem ou mal, por isso escrevo sempre. Às vezes, com o auxílio do orangotango. Mas tenho de fazê-lo. E o faço, porque tenho acesso a histórias demais. Seja lendo, seja vivendo, os últimos anos de minha vida têm sido pródigos em experienciar histórias. E elas não mais cabem dentro de mim.

Quem se propõe a contar histórias sabe que elas - as histórias - não existem. Apenas existe quem as conta. Portanto, se você sabe quem conta a história, ela existe. E nos episódios mais tensos e curiosos de nosso tempo, nunca tantas e tão curiosas histórias foram contadas. Queria falar sobre o massacre de Suzano, mas simplesmente não consegui. Ali, naquele caso, há um milhão de histórias que não devem ser contadas. São elas as que precisam ser escritas. Simplesmente, não consegui.

Para quem se propõe a ser um narrador do que acontece ou do que se imagina acontecer, sabe que num romance o que não se conta é sempre mais importante do que aquilo que se conta. A arte de quem narra consiste em silenciar a tempo. No fundo, a quem escreve, a melhor maneira de contar uma história é não contá-la. Mas só vale a pena serem contadas as histórias que não devem ser contadas. Essa é a beleza da Literatura.

E mente quem afirma que sabe exatamente o caminho que seu texto irá trilhar. Ou pode até não mentir, mas você pode ter certeza que o texto será uma bela porcaria. Quem sempre sabe aonde vai, nunca chega a lugar algum. Só sabemos o que verdadeiramente queremos dizer quando isso já foi dito. Por isso é tão difícil escrever. Por isso peço constantemente ajuda a Bidu e a meu colega orangotango bem treinado.

É por isso, também, que sempre encontramos por aí esses escrevinhadores quarentões, com ar blasé, que já desistiram da furiosa aspiração de glória que a juventude lhes trouxera. Já foram resignados à mediocridade do presente e à desfaçatez do futuro, mantendo a cota mínima de álcool, tristeza e algum cinismo, indispensáveis para a sobrevivência. Ainda hei de participar da fundação de uma associação desses caras.

Mas foi conversando com quem conseguiu alcançar o sucesso, e nada pior a quem escreve do que tê-lo alcançado, que pude entender porque a atividade do orangotango não o torna um escritor. Um escritor de verdade, ele não apenas coloca uma palavra ao lado da outra, com alguma leveza e graciosidade. Um escritor se propõe a problemas complexos e, no lugar de resolvê-los, trabalha para ficarem ainda mais complexos. São uns malucos, que olham para a realidade, e, às vezes, a vê.

Isso mesmo que eu disse, nem todo mundo vê a realidade. Todo mundo olha para ela, mas poucos são capazes de vê-la. Essa é a atividade principal do escritor-artista. É tornar visível o que todos olham, mas ninguém pode, ninguém sabe ou ninguém quer ver. De um modo geral, não queremos ver. Na maioria das vezes, a realidade nos traz coisas tristes, desagradáveis ou horrendas. É preciso ter muita coragem para ver e não fechar os olhos ou sair correndo, porque quem as vê se enfurece ou enlouquece. Nem todo mundo tem condições de ver. Nem todo mundo possui um escudo de proteção contra o mundo real.

Então, eu queria contar a vocês algumas histórias sobre o massacre de Suzano, mas peço desculpas. Essa realidade, essa realidade que a gente olha mas não vê, desta vez é cruel demais até para quem escreve. É melhor não saber. Fiquem com o orangotango.

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