Cerrado pode perder um terço da água, aponta estudo
No Cerrado, 93% das bacias devem ter redução na disponibilidade de água, é o que aponta o estudo The heavy impact of deforestation and climate change on the streamflows of the Brazilian Cerrado biome and a worrying future, apoiado pelo ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza). Segundo a pesquisa, o bioma deve perder 34% da sua vazão de água nos próximos 28 anos. O estudo em fase de revisão pela revista científica Sustainability, concluiu que o desmatamento é a principal causa dessa diminuição, responsável por 56% do impacto. Devem ser perdidos 23.653 m³/s até 2050, só nos rios analisados no estudo, essa perda equivale à vazão de oito rios Nilo.
A situação é motivo de preocupação local, nacional e global. Os recursos hídricos do bioma estão cada vez mais escassos localmente e já apresentam perda de 15,4% da vazão dos rios. Ainda assim, água segue sendo exportada para China, União Europeia e Estados Unidos em forma de “água virtual”, ou seja, água consumida na produção dos grãos e carne (commodities).
A pesquisa analisou o comportamento de 81 bacias hidrográficas no Cerrado, em um período entre 1985 e 2022. Destas, 88% já apresentam diminuição da vazão devido às intensas mudanças do uso do solo na área de abrangência da bacia hidrográfica. O número alto indica tendência sistêmica de escassez de água e ampliação do estresse hídrico até 2050 em especial ocasionado pela ocupação agropecuária de larga escala, o agronegócio.
O estudo chama atenção para as mudanças no uso da terra pela expansão da agricultura e de pastagens, responsável por cerca de 46% da emissão de gases de efeito estufa (GEE) do país, o que é um dos fatores de impacto do agronegócio nas mudanças climáticas. Impacto esse que retorna, intensificando secas e impactando a própria agricultura e ampliando conflitos por água.
Mudança na governança das águas
A principal conclusão da análise é que a expansão da agricultura para commodities e a escassez de água estão intrinsecamente ligadas. Yuri Salmona, geógrafo, doutor em Ciências Florestais pela Universidade de Brasília e responsável pela pesquisa, comenta que o aumento da exportação de commodities que consomem água mudou a governança das águas.
“Os controles local, regional e nacional das águas do Cerrado foram substituídos por atores que dominam a cadeia global de produtos agropecuários”, diz o especialista. Isso significa que a água do rio, em vez de beneficiar as comunidades locais ou a população brasileira, está sendo controlada por empresas do agronegócio que desviam o fluxo hídrico para irrigação e enviam água para importadores em forma de commodities. Salmona indica que o uso da água para produção agrícola no Brasil tem que ser monitorada e avaliada com rigor por órgãos governamentais que garantam o interesse coletivo em detrimentos a interesses particulares.
Mudanças climáticas
Apesar das mudanças no clima também interferirem na redução da vazão dos rios, a pesquisa mostra que o desmatamento é o grande fator isolado que interfere na segurança hídrica. Por meio de testes estatísticos, modelagens validadas e repetidas checagens para mapear a oscilação da vazão dos rios ao longo do tempo, Salmona e seus colegas conseguiram estabelecer projeções para as próximas décadas e analisá-las a partir do isolamento dos efeitos do desmatamento e das mudanças climáticas. O resultado mostrou que as mudanças climáticas contribuíram com 43% da redução da vazão, menos que o desmatamento, responsável por 56% do impacto negativo nas águas. E modelagens futuras produzidas pelo estudo indicam que o papel do uso do solo na redução da vazão dos rios do Cerrado deve ter peso ainda maior.
Essa conclusão foi alcançada a partir da observação do aumento da evapotranspiração potencial, associado ao aumento de temperatura e de radiação. Apesar de as mudanças climáticas terem sido sentidas com mais intensidade durante o período de seca, foi possível constatar que as alterações no regime de chuvas, não são protagonistas na redução das vazões.
Segundo a Agência Nacional de Águas, com base na conjuntura dos recursos hídricos no Brasil de 2018, 68% do consumo de água é feito pela agricultura. Somada à pecuária, 80% da água está comprometida ao agronegócio, que por si só, de acordo com o Mapbiomas, é responsável por 97% do desmatamento no Cerrado, principal emissor de carbono no país.
No oeste da Bahia, por exemplo, desde de 2012 a indústria do agronegócio teve acesso irrestrito à água, em uma região de aumento da escassez e piora de conflitos sociais por insegurança hídrica. Lá, o setor tem avançado sobre rios que abastecem e territórios que abrigam comunidades de fecho de pasto, geraizeiros, agricultores familiares e pescadores com o objetivo de expandir plantações, gerando revoltas e protestos da população.
Segundo uma investigação da Agência Pública, no oeste baiano, o agronegócio capta 1,8 bilhão de litros de água por dia de maneira gratuita. Esse volume de água é o suficiente para abastecer cerca de 11,8 milhões de brasileiros, população maior que a de 22 estados brasileiros e do Distrito Federal. Parte dessa água é captada por meio de barramentos em riachos e veredas, captação direta de rios e por meio de poços que acessam água subterrânea que compõem o aquífero Urucuia.
Importância hídrica e energética do Cerrado
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