terça-feira, 26 de novembro de 2019

DISTORÇÃO, por Carlos Lula


Faz parte da nossa rotina. Acordar, tomar café da manhã, vestir a roupa e, faça chuva ou sol, saímos de casa.  Colocamos o pé para fora e pronto. Nada nos impede de ir, nada impede a maioria de nós de irmos em direção aos nossos compromissos.

Assim acontece até o aparecimento desagradável de alguma marca no rosto. Um corte, um hematoma, uma conjuntivite, terçol. Por alguns dias, por algumas semanas, esta será nossa preocupação. A rotina vai mudar, vai atrasar, a vergonha surge. “Logo no rosto?!”, pensamos.

A aparência importa, alguns a utilizam como instrumento de trabalho, mas, por vezes, sou surpreendido por uma realidade que coloca essa nossa preocupação estética no devido lugar. Participar tão de perto da saúde pública é o choque necessário para lembrar de pessoas que carregam imensa dificuldade de atender a uma simples necessidade como sair de casa e viver uma rotina sem grande preocupação com a aparência facial.

Esta semana, o Hospital Dr. Carlos Macieira deu início aos procedimentos cirúrgicos para tratamento de fissura labiopalatina de pacientes entre 14 e 47 anos. Para quem não consegue visualizar esta malformação, trata-se da fenda labial superior, que pode se estender até o nariz, e do palato. 

Alguns julgariam o procedimento como uma necessidade estética, apenas. Envolve muito mais do que isso, é importante dizer. Há distúrbios na fala, afeta esteticamente o indivíduo, dificulta respiração, audição, sucção, mastigação. Sobretudo, a interação social é totalmente comprometida.

Aos 15 anos de idade, Joab Ribeiro está entre os pacientes do Carlos Macieira. A mãe do adolescente, dona Silnélia Ribeiro, descreveu o filho como tímido, isolado, com baixa autoestima e rendimento escolar prejudicado. Enquanto narrava a vida do filho, nos emocionava saber que sua esperança seria colocar fim ao isolamento do adolescente, durante esta que é a fase emocionalmente mais complicada da vida dele.

Dona Silnélia nasceu com o mesmo problema, mas ainda jovem conseguiu realizar o procedimento cirúrgico. Com o nascimento do filho, o drama familiar recomeçou e esperamos que agora tenha um fim. Essa família, da cidade de Governador Nunes Freire, precisa do serviço público há muito mais tempo do que se imagina e sem ele teria sido de uma imaginável dificuldade superar todas as barreiras emocionais, físicas, sociais. Em uma clínica particular o procedimento custaria até R$ 75 mil, ou seja, longe demais da realidade da família Ribeiro. 

Estas ocasiões são necessárias para percebemos que nossos hábitos de vida não podem se passar sempre como atos rotineiros e sem significado. Olhamo-nos no espelho sem a menor afeição com aquilo que ganhamos da vida, um rosto sem marcas. Pior que isso, conhecendo a história da família Ribeiro, percebo que ainda nos falta muito mais humanidade. A assistência médica já está sendo ofertada pelo SUS, ainda há um longo caminho a percorrer para tratamento do aspecto físico. Contudo, por mais humanizado que seja nosso atendimento, sem empatia coletiva nem o rosto mais perfeito desejaria sair de casa.

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