segunda-feira, 30 de novembro de 2020

O dia que Maradona nos fez chorar, por Carlos Lula


Era um domingo. 24 de junho de 1990. Como fazíamos todos os fins de semana, estávamos reunidos para o almoço em família. Eu, com a revista do Zé Carioca a tiracolo, onde o Brasil era campeão da Copa do Mundo, e uma bandeirinha do Brasil na outra mão, era provavelmente o mais empolgado entre todos ali.

Era muito criança e ainda não entendia nada de tática e muito menos que o time do Lazaroni, a despeito de ter ótimos jogadores, jogava um futebol bem ruim. Mas naquele dia, foi o oposto. 

O Brasil jogava bem e perdia inúmeras oportunidades. Até que Don Diego pegou a bola no meio-campo, arrancou, driblou três brasileiros e tocou para Caniggia aparecer sozinho em frente à Taffarel. 1x0. Gol que nos custaria a eliminação naquela Copa do Mundo. A mim, mais do que isso. Maradona me fez ter minha primeira recordação de ter chorado vendo um jogo de futebol.

Ao fim do jogo, eu recordo de olhar o povo argentino delirando, gritando e chorando em verdadeira euforia. Choravam com vigor, com gratidão, um tanto de incredulidade, mas também com muita alegria e tristeza. Sim, alegria e tristeza por presenciar o incrível, o irrepetível. Alegria por presenciar esse momento único e tristeza por saber que esse momento nunca mais irá se repetir. Ao povo latino as festas são tão importantes por isso: funcionam como um momento de exorcismo, uma catarse absurda, fuga de uma realidade muitas vezes tão sofrida.

Fui apresentado a Diego Armando Maradona naquele dia, o homem que me fez chorar por algo que não imaginava ser possível. À medida que crescia, o Maradona mágico foi se transmutando num Maradona desesperado. Desesperado por salvar sua vida, desesperado por tentar levar novamente a Argentina a um patamar quase impossível. Sempre ali, à beira do abismo, olhando para o precipício.

Que personagem poderia representar melhor as contradições da América Latina? Quem não torcia por aquele homem que lutou contra tudo, um rebelde, mas que sabia ser ele o melhor? Ou alguém pode imaginar que o que se passava entre Maradona e a bola era algo normal? As embaixadinhas no aquecimento jamais poderiam ser consideradas algo natural. Uma composição de Bach ou Beethoven não é algo normal. A sua batida na bola também não era.

Mas ser agraciado com um dom como esse é simplesmente algo terrível, nos recorda Mariana Enriquez, jornalista argentina. Truman Capote costumava dizer que quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação. O de Maradona lhe foi insaciável.

Em geral, quem luta contra monstros não colhe bons resultados. Se o monstro é a fama, a televisão, a mídia, ele tem ainda mais fome e ainda é mais cruel. Suas cabeças atacam todas ao mesmo tempo, ora oferecendo dádivas, na maior parte do tempo comendo nosso intestino. Mas quem tem o dom sabe que vive não no tempo presente, mas vive para sempre. Diego sabia disso e foi atormentado por isso a vida inteira.

O problema é que viver depois da morte é incompatível com a vida que vivemos. Ninguém sabe como é ser um mito e ninguém sabe o que significa viver assim. Ele também não sabia. É impossível você ser o extraordinário, o sublime, o excepcional e ter de viver como um humano. Ele fazia o que podia. E fugia do jeito que podia.

Sua breve vida entre a gente foi um evento. Uma arrancada que deixou o companheiro na cara do gol. Uma mão na bola que rendeu um gol antológico contra o inimigo de guerra. O choro e a confusão até no momento de seu velório. Maradona era a Argentina e era a América Latina. Com sua brutal desigualdade, com suas belezas e contradições. Com intensidade. O homem que nos arrancava choros e lágrimas. Que conseguia ser alegria e tristeza. Vá em paz, Don Diego.

Nenhum comentário:

Postar um comentário